Publicado em 20 de maio de 2010
BRASIL
Há uma realidade mortal escondida por trás dos abortos no País. De
acordo com estimativas do Ministério da Saúde, entre 729 mil e 1,25
milhão de mulheres se submetem ao procedimento anualmente no Brasil.
Destas, pelo menos 250 morrem, consideram organizações.
Se a análise for feita em escala mundial, o obstetra da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) Osmar Ribeiro Colas explica que são cerca
de 500 mortes diárias por causa de abortos. “Quando cai um avião
ficamos chocados, mas há dois Boiengs de mulheres caindo por dia e
ninguém fala nada”, lamenta.
E, quando não morrem, por vezes essas mulheres acabam com sequelas
irreversíveis. “Algumas colocam produto químico ou objeto metálico no
útero para abortar. A chance de infecção e perfuração é muito grande,
1/3 de quem tenta abortar acaba procurando ajuda no hospital”, afirma
Morais Filho.
A candidata do PT à presidência da República, Dilma Rousseff,
reacendeu nesta semana a discussão sobre a descriminalização do aborto
no País. Em entrevista à revista Isto É, a ex-ministra afirmou que o
aborto não é uma “questão de fórum íntimo, mas de saúde pública” e
defendeu que não se pode segregar as mulheres. “Deixar para a população
de baixa renda os métodos terríveis, como aquelas agulhas de tricô
compridas, o uso de chás absurdos, enquanto as mulheres de renda mais
alta recorrem a clínicas privadas para fazer”.
Mulheres seguram faixa a favor do aborto
O tema também já foi abordado pelos outros candidatos à
presidência. A candidata pelo PV, Marina Silva, disse à revista Veja ,
em setembro de 2009, que pessoalmente é contra, mas “não julga quem o
faz”. “Acho apenas que qualquer mudança nessa legislação, por envolver
questões éticas e morais, deveria ser objeto de um plebiscito”.
O também candidato à Presidência, José Serra (PSDB) afirma que é
contra. “Eu não sou a favor do aborto. Agora, qualquer deputado pode
fazer isso. No âmbito do Congresso, eventualmente até por meio de
consulta à população”. Quando ministro da Saúde (1998-2002), Serra
aprovou a Norma Técnica que permite o aborto em casos de estupro.
"Desculpa para matar"
A discussão do tema no País, porém, encontra grandes entraves nos
aspectos morais e religiosos. A Igreja Católica, que condena os abortos
inclusive nos casos previstos em lei, como estupro e risco de morte da
mãe classifica de “desculpa para matar”. “Não podemos apoiar o uso da
saúde pública como argumento para promover o aborto e desconstruir
famílias”, disse ao
iG o bispo Antonio Augusto Dias
Duarte, da Comissão de Vida e Família da Conferência Nacional dos Bispos
Brasileiros (CNBB).
Para o bispo, não se pode optar entre vidas, seja da mãe ou do feto.
“A vida humana é o maior direito que existe”, diz ele, e argumenta que
mesmo em caso de estupro deve-se ter o bebê. “A mulher violentada é
submetida a um trauma muito grande, mas não pode tirar a vida de uma
criança inocente. Em termos de trauma, o aborto é muito mais violento
que o estupro. A igreja não pode aceitar”.
Sem fazer menção explicita ao aborto, a CNBB recomendou, na última
quarta-feira, na “Declaração sobre o Momento Político Atual” que as
pessoas votem em candidatos “comprometidos com o respeito incondicional à
vida e à família (...)”.
Kauara Rodrigues, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria
(CFEMEA) considera que a discussão não avança porque fica sempre
polarizada em quem é a favor e contra. “O Brasil que se diz laico não o
deveria deixar a religião pautar”, critica.
Legislação proibitiva
A
legislação
restritiva em vigor hoje, conforme especialistas, faz com que o
aborto seja um problema quase exclusivo das classes menos favorecidas.
Quem tem dinheiro faz com um médico seguro, quem não tem vai para uma
clínica de “fundo de quintal” ou parte para a auto-agressão. “Toda a
sociedade sabe disso, mas somos coniventes e hipócritas porque não são
as nossas mulheres e filhas que vão morrer, são as pobres”, afirma
Morais.
Centenas de manifestantes do Movimento
Nacional Brasil sem Aborto
Pelo Código Penal Brasileiro, de 1940, provocar aborto pode
resultar em uma pena de um a três anos de detenção. A lei é a mais
proibitiva existente no mundo e adotada em países como Nigéria, Angola e
Sudão. Em toda a Europa, com exceção da Polônia, e em países como
Estados Unidos e Canadá o aborto é autorizado sem nenhuma restrição.
Legalmente, no último ano foram 1.682 mil abortos realizados no País,
segundo o Ministério da Saúde.
Para Beatriz Galli, assessora de Direitos Humanos da ONG Ipas, o País
não está cumprindo acordos e recomendações internacionais, como a do
Comitê pela Eliminação da Discriminação contra as Mulheres das Nações
Unidas, que afirma que negligenciar o acesso a serviços de saúde que
somente as mulheres necessitam é uma forma de discriminação. “O Brasil
anda na contra mão da legislação mundial e dos compromissos que
assumiu”, critica.
Do jeito que está, o médico Colas explica que mesmo mulheres que
podem ter a saúde significativamente agravada por causa de uma gravidez
são obrigadas a levar a gestação adiante. “O risco de morte materno é um
conceito muito aberto. Às vezes a mulher tem um problema de rim e a
gravidez vai piorá-lo, ou então é diabética e pode ficar cega e ainda
assim não é autorizada a abortar. Precisamos ampliar pelo menos as
indicações”, considera.
Além de ser um risco para a saúde de muitas mulheres, a ilegalidade
também acarreta um alto custo para o sistema de saúde brasileiro. De
acordo com estimativa da International Planned Parenthood Federation
(IPPF), que atua em 170 países, o governo gasta cerca de R$ 35 milhões
por ano com questões relacionadas a abortos inseguros.
Medo e retrocesso
O Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, já declarou que o aborto é
uma questão de saúde pública e não criminal. O presidente Lula também se
posicionou a favor, mas voltou atrás. O Plano Nacional de Direitos
Humanos, lançado em dezembro de 2009, defendia a descriminalização do
aborto “considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus
corpos".
Para associações, a pressão da igreja fez com que Lula modificasse o
trecho e alegasse que aquela não era a posição do governo. Na última
quinta-feira, foi publicado no Diário Oficial da União, alterações na
redação do programa. Assim, foi retirada a parte de descriminalização e o
documento diz apenas “considerar o aborto como tema de saúde pública,
com a garantia do acesso aos serviços de saúde".
Agora, além de não avançar na questão, mulheres temem o retrocesso.
Entre os Projetos de Lei para serem votados está o 2.504/2007 do
ex-deputado Walter Brito Neto (PRB-PB), que obriga o cadastro das
gravidezes em todas as unidades de saúde. Para Rogéria Peixinho, da
Articulação de Mulheres, é “uma clara forma de tentar controlar a
autonomia reprodutiva das mulheres”.
Há também o projeto 3.204/08, do deputado Miguel Martini (PHS/MG) que
propõe a obrigatoriedade de se estampar, nas embalagens de produtos
para detecção de gravidez, a advertência “aborto é crime: aborto traz
risco de morte à mãe; a pena por aborto provocado é de 1 a 3 anos de
detenção”.
No entanto, o mais criticado dos projetos é o 478/2007, de autoria
dos deputados Luiz Bassuma e Miguel Martini, que institui o Estatuto do
Nacituro – sendo nacituro a pessoa concebida, mas não nascida. A lei
dispõe sobre a proteção integral ao feto e propõe, no artigo 13, que o
“nascituro concebido em um ato de violência sexual não sofrerá qualquer
discriminação ou restrição de direitos e ainda terá direito a uma pensão
alimentícia equivalente a um salário mínimo até que complete dezoito
anos”. Se for identificado o estuprador, ele quem deve pagar; se não, o
Estado.
Rogéria afirma que o projeto “legaliza a violência e legitima o
estupro”. “Chamamos de Bolsa Estupro, ele tortura a mulher durante nove
meses e faz com que o estuprador tenha que pagar pensão. Se é crime,
como ele vai pagar?”, indigna-se.
Redução de danos
A questão de como se lidar com aborto não encontra concordância nem
mesmo entre a classe médica. O ginecologista Marco Sobreira, do Espírito
Santo, quando procurado por mulheres que querem abortar tenta
dissuadi-las a desistir, quando não tem sucesso, as manda procurar outro
“colega”. “Não posso compactuar com isso, você impede uma geração
inteira de vir. Todo mundo se preocupa com a mãe, mas não se pode pensar
só nela. Minha luta contra o aborto é porque tenho a visão do embrião
também”, diz.
Essa, porém, não é a orientação seguida por muitos médicos
atualmente. Diante do impasse sobre a questão e da irredutibilidade de
muitas pacientes, uma posição crescente adotada nos consultórios é a da
“redução de danos” durante o abortamento. “Não faço porque é crime, mas
se a mulher diz que vai fazer dou as orientações básicas para minimizar
os danos. É dever ético do médico fazer isso, senão ajo por omissão”,
explica Morais Filho.
Osmar Colas diz que só não faz “durante, mas está presente antes e
depois do procedimento”. “Não faço, mas posso me expressar e me
relacionar com minha paciente, pedir para que procure uma clínica bem
estruturada ou que use a dose certa do remédio. Falo para que quando
acabar ela venha ao meu consultório para eu ver se foi bem feito, se há
sinal de hemorragia”, afirma. Depois, diz, é orientá-la a se planejar
para que aquilo não ocorra novamente.
Do Último Segundo